domingo, 17 de junho de 2012

História de uma mente perturbada

Onze horas da noite. Chuva, frio, lágrimas e latidos desesperados de um Vira-lata desengonçado e fiel. Em conjunto, a persiana quebrada e mal lavada batia fortemente na janela de vidro do quarto claustrofóbico. Uma verdadeira sinfonia de horror, tocada por um maestro em perfeito desequilíbrio mental.



 
Cenário perfeito: Insensatez e medo.

Os motivos, aos olhos de alguns, até podia parecer banal, um tanto fantasioso, pois sim. Mas aos olhos da garota, o que acontecia há tempos era fato. A perseguição era tão real quanto a árvore seca avistada por entre a persiana.  O coração, há dias, batia forte, feito a goteira insistente e mal educada que caia na panela de aço velho, junto às garrafas vazias jogadas ao chão, naquele momento. Um barulho em sintonia ao também desespero canino ao seu lado.

A largada foi dada. Seu instinto de sobrevivência gritava tanto, ao ponto de quase acordar os vizinhos, já desacreditados com as chamadas loucuras quase esquizofrênicas e embriaguices da garota. Recolheu o quase-nada que havia no quarto fendendo à cerveja e levou consigo seu animal, o que tinha de mais valioso e confiável.

Onze horas. Domingo e chuva. As ruas desertas e lamacentas registravam o esquecimento, por parte do governo, daquele bairro periférico. As casas de madeira velha, feitas de pedaços sujos, comidos por cupins, jogados pelo meio das ruas estreitas, acentuavam o pavor embutido naqueles olhos castanhos. A pouca esperança estava quase desaparecendo por completo e o instinto humano-animal quase tomado pela desistência, até ouvir o latido do amigo desesperado direcionado ao fim da rua tortuosa.

Finalmente uma casa desapossada. Entraram. Não foi difícil, a madeira velha ajudou. Apenas um cômodo, uma cama, uma mesa de canto, um fogão velho portátil, um espelho encaronchado e uma janela de vidro quebrado.

Acomodou-se entre a poeira posta no canto esquerdo de um lençol encardido de uma cama aos pedaços. O cachorro preferiu debaixo do móvel, o chão parecia mais confortável. Enquanto isso as horas passavam e só a chuva permanecia insistente.

A garota acordou assustada, porém percebendo o mais importante:

“Ainda estou viva.”

Pôs a mão direita debaixo da cama e, mais calma, sentiu a língua do cachorro lamber seus dedos. Era só esperar a chuva passar e seguir caminho. Fechou os olhos.

 A agonia a fez novamente acordar sobressaltada. Mais uma vez pôs a mão e sentiu a língua quente do animal. Agradeceu ao cachorro. Fechou os olhos e os arregalou no exato momento em que ouviu um barulho vindo em direção da janela. O medo a tomava por completo enquanto o silencio se apossava do local.

Aqueles olhos castanho-arregalados percorreram corajosos cada ponta daquele espaço escuro. A respiração ofegante parou quando enfim conseguiu ler as letras escorridas e vermelhas escritas no espelho:

“Humanos também sabem lamber!”

A vontade de chorar entalou-se na garganta seca sedenta por um grito sôfrego abafado pelas mãos sujas de sangue vira-lata. A luta pela sobrevivência travada frente ao espelho a impossibilitava de enxergar o rosto da coisa que a agarrava. A tentativa de fuga foi neutralizada pelo objeto metálico e pontiagudo ainda quente que lhe perfurava lentamente a carne das costas. Gesto repetido várias vezes, ao som da chuva, por puro prazer de uma mente doentia.

 A desistência acabou no exato momento em que percebeu seu corpo caindo inerte ao chão sujo com os olhos direcionados ao que ainda encontrava-se debaixo da cama. A cabeça do animal, desprendida de seu corpo esquartejado foi a última coisa que aqueles olhos castanhos puderam ver ainda com vida.