Onze horas da noite. Chuva, frio,
lágrimas e latidos desesperados de um Vira-lata desengonçado e fiel. Em
conjunto, a persiana quebrada e mal lavada batia fortemente na janela de vidro
do quarto claustrofóbico. Uma verdadeira sinfonia de horror, tocada por um
maestro em perfeito desequilíbrio mental.
Cenário perfeito: Insensatez e
medo.
Os motivos, aos olhos de alguns,
até podia parecer banal, um tanto fantasioso, pois sim. Mas aos olhos da
garota, o que acontecia há tempos era fato. A perseguição era tão real quanto a
árvore seca avistada por entre a persiana. O coração, há dias, batia forte, feito a
goteira insistente e mal educada que caia na panela de aço velho, junto às
garrafas vazias jogadas ao chão, naquele momento. Um barulho em sintonia ao também
desespero canino ao seu lado.
A largada foi dada. Seu instinto de
sobrevivência gritava tanto, ao ponto de quase acordar os vizinhos, já
desacreditados com as chamadas loucuras quase esquizofrênicas e embriaguices da garota. Recolheu o quase-nada que havia no quarto fendendo à
cerveja e levou consigo seu animal, o que tinha de mais valioso e confiável.
Onze horas. Domingo e chuva. As ruas desertas e
lamacentas registravam o esquecimento, por parte do governo, daquele bairro
periférico. As casas de madeira velha, feitas de pedaços sujos, comidos por
cupins, jogados pelo meio das ruas estreitas, acentuavam o pavor embutido
naqueles olhos castanhos. A pouca esperança estava quase desaparecendo por
completo e o instinto humano-animal
quase tomado pela desistência, até ouvir o latido do amigo desesperado
direcionado ao fim da rua tortuosa.
Finalmente uma casa desapossada. Entraram. Não foi
difícil, a madeira velha ajudou. Apenas um cômodo, uma cama, uma mesa de canto,
um fogão velho portátil, um espelho encaronchado
e uma janela de vidro quebrado.
Acomodou-se entre a poeira posta no canto esquerdo de
um lençol encardido de uma cama aos pedaços. O cachorro preferiu debaixo do
móvel, o chão parecia mais confortável. Enquanto isso as horas passavam e só a
chuva permanecia insistente.
A garota acordou assustada, porém percebendo o mais
importante:
“Ainda estou viva.”
Pôs a mão direita debaixo da cama e, mais calma,
sentiu a língua do cachorro lamber seus dedos. Era só esperar a chuva passar e
seguir caminho. Fechou os olhos.
A agonia a fez
novamente acordar sobressaltada. Mais uma vez pôs a mão e sentiu a língua quente
do animal. Agradeceu ao cachorro. Fechou os olhos e os arregalou no exato
momento em que ouviu um barulho vindo em direção da janela. O medo a tomava por
completo enquanto o silencio se apossava do local.
Aqueles olhos castanho-arregalados percorreram corajosos
cada ponta daquele espaço escuro. A respiração ofegante parou quando enfim conseguiu
ler as letras escorridas e vermelhas escritas no espelho:
“Humanos também sabem lamber!”
A vontade de chorar entalou-se na garganta seca
sedenta por um grito sôfrego abafado pelas mãos sujas de sangue vira-lata. A luta
pela sobrevivência travada frente ao espelho a impossibilitava de enxergar o
rosto da coisa que a agarrava. A tentativa de fuga foi neutralizada pelo objeto
metálico e pontiagudo ainda quente que lhe perfurava lentamente a carne das
costas. Gesto repetido várias vezes, ao som da chuva, por puro prazer de uma
mente doentia.
A desistência
acabou no exato momento em que percebeu seu corpo caindo inerte ao chão sujo
com os olhos direcionados ao que ainda encontrava-se debaixo da cama. A cabeça
do animal, desprendida de seu corpo esquartejado foi a última coisa que aqueles
olhos castanhos puderam ver ainda com vida.