segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Medo de gente morta?

A chuva fina e renitente batia na janela do quarto. Entreaberta, deixava o vento frio entrar enquanto balançava a cortina de pano, mole, fino, quase transparente, em conjunto com o pouco de água que entrava por entre a janela e caía ao chão, bem perto de um “Sidney Sheldon”, em cima do criado mudo ao lado da cama de Sofia. A dança da cortina ora cobria a churrasqueira velha, caindo aos pedaços, no quintal escuro visto da janela, ora não.

As nove, bem quando a chuva no quarto entrava e a cortina dançava, Sofia torcia sua chave na maçaneta da porta da sala. Travou. Sem guarda-chuva, a água lhe batia nos cabelos longos e cacheados, deixando filetes de água escorrer sobre seus olhos borrados de rímel. Foi um dia agoniante, não conseguiu êxito na possibilidade de emprego que lhe havia aparecido e ainda assim, nem em casa conseguia entrar:

“Porra. Chave filha da puta!”. Ela era boa com os palavrões.

Fechou os olhos e respirou fundo. Tentou mais uma vez. Abriu. Entrou. Amarrou os cabelos no alto ainda em direção à porta. Acendeu a luz da sala, largou a bolsa no sofá e sentou. Fechou os olhos e ouviu um barulho vindo em direção da cozinha. Levantou receosa e deu dois passos a sua frente, em direção a cozinha escura. Havia alguma coisa ali, uma espécie de sombra, mas algo instantaneamente lhe tirou o foco. O telefone tocou ensurdecedoramente e a obrigou, com um susto, o atender:

“Alô!”
“Alô, amor, vou chegar mais tarde. Acabei perdendo a hora na casa do Raul, me distraí ouvindo uns sons. Tás com fome?”
“Sim, seria uma boa trazer alguma coisa da rua, como pedido de desculpa pelo atraso.”
Oquei, vou vê o que faço. Cuidado. Até daqui a pouco.”

Desligou e resolveu deixar pra lá a cozinha, pensando “Provavelmente coisa da minha cabeça”. Sua roupa molhada lhe marcava o corpo, deixando à mostra uma barriga saliente, que tanto lhe encomodava. Foi ao quarto trocá-la. Ao ver a janela esquecida entreaberta, seu livro quase molhado e sua cortina dançando ao vento, fechou o espaço que faltava. Sem perceber que, atrás da churrasqueira, a mesma sombra da cozinha ali permanecia.

Pensou na cerveja que se encontrava na geladeira e foi até a cozinha, sem se importar com o barulho que momento antes havia ouvido. Abriu a garrafa e bebeu na boca mesmo, sem cerimônias. Soltou um arroto, que por conveniência social, estava preso desde cedo. Selecionou umas músicas no play list do seu computador e um som abafado, de pés em contado brusco com o chão, veio de seu quarto, bem quando começava Down in Mexico. Uma faísca de medo começou a surgir, indo contra a sensação natural proporcionada pela música: vontade de foder.

Aquilo a neurou intensamente e de imediato, lembrou do barulho vindo da cozinha. Com certo receio, foi até o quarto. Sofia tinha um defeito, de acordo com seu namorado, sentia muito mais medo de gente morta do que de gente viva.

A janela estava aberta e a cortina dançava novamente. Franziu a testa ao pensar “eu acabei de fechar essa merda”. Fechou novamente. Virou-se rápido em direção a porta. Queria o telefone, queria ligar pra ele. Porém nesse momento tudo ao redor pareceu sumir e o único foco era o que se encontrava em pé diante da porta. Tudo o que Sofia conseguia avistar naquele momento era algo de um preto intenso, de uma roupa preta intensa, olhos de um preto intenso e um sorriso doentio. Olhos que a fitavam ao levantar a faca em sua direção. Uma faca enferrujada, feia e torta que avançava em cima, de seu corpo pequeno e desprotegido, junto à coisa à sua frente.

Correu desesperada, em um grito sufocado, em direção à porta, mas não obteve êxito. Aquilo a agarrou. Sem pensar duas vezes lhe enfiou a faca na barriga, cheia apenas por uns goles de cerveja velha, retirando-a devagar e a enterrando novamente. Repetiu o movimento algumas vezes, mais rápido, contracenando com a música vinda da sala. Era uma analogia ao ato de copular. A faca entrando e saindo das entranhas de Sofia. Era assim que aquele monstro se excitava. Com o movimento e o vermelho intenso que escorria sobre seus pés. Um olhar de gozo foi a última coisa que os olhos, ainda com vida, de Sofia conseguiram enxergar.

Às onze:
“Sofia? Sofia? Acorda amor. Eu trouxe comida, vá trocar essa roupa molhada”

Ela acordou assustada, olhava, sem entender coisa alguma, pro rosto de seu namorado. O abraçou forte e percebeu que tudo foi um pesadelo. Desses que, quase todas as noites, tinha quando mais nova. O beijou. Levantou e olhou pro lado. Lá estava ela, em cima da mesa do telefone: a faca enferrujada, torta e feia.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

O inconsciente de um sonho já consciente

Os sonhos são considerados as coisas mais loucas da coisa mais complexa que é o homem [sua mente]. Acho que por isso é louco. A complexidade guarda com muito carinho a loucura. E a loucura a sete chaves a complexidade. Pra falar a verdade, não tenho apreço pelo simples e pelo lúcido [não o tempo todo]. Que graça tem o caminhar dos dois juntos, a todo o momento? O papo é desvendar, descobrir, o sentido e motivo de tudo, com o decorrer da loucura de certas atitudes, bem devagar. Eu disse “devagar”, o que nada tem a ver com intenso.

A origem de um sonho é considerada, ainda por muitos, o inconsciente. Apesar de achar que o caso aqui difere um pouco. Esses me parecem bem conscientes. Presentes todos os dias. É, tenho plena consciência desse desejo. Confesso que antes, andava guardado ali no fundo da massa enrolada de dentro da minha cachola enrolada. Mas agora é bem mais explícita sua origem.

Não tem coisa mais escrota: acordar de manhã de uma irrealidade tão boa. Me acordei com um aperto. Parecia tão real. Uma chave em um chaveiro colorido. Uma porta. Uma sala, pequena, mas só minha. Uma cozinha. Quarto. Banheiro. Pronto. E os braços abertos. Braços em conjunto com um olhar e um sorriso gigante em perfeita combinação aos cabelos, feito de alguém que há muito tempo não me via e que aparentava felicidade ao fazer.

Chaves, porta, sala, cozinha, quarto, banheiro e abraço. Combinação alucinógena.

Mas o que eu dizia? Ah, sim, o sonho quanto mais louco é, melhor. E quanto mais cores têm, mais sons, mais cenas, a realidade parece mais próxima. E machuca, por isso. O que foi dito naquele abraço, naquele espaço, eu guardo aqui, nas lembranças. Foram frases misturadas, tiradas de um canto real e de outro criado no inconsciente já consciente das minhas vontades, transpassadas ao sonho.

Sei que corro aqui um risco grotesco de ser clichê. Mas sabes de uma coisa? Quanto mais se trata de sentimento, de loucura, de vivência, o clichê vai tá ali de mão dada com tudo isso. E sempre vai ser bem visto, por mais que aparente brega. Mesmo não gostando dessa palavra. É, talvez por preconceito, mas nada que a minha vivência não resolva isso com o tempo. Assim como esse sonho. Nada que a minha vivência não me permita agir acompanhada da loucura e não dê uma força ao tempo, tornando o desejo real.

O sonho também tem outra origem. Dizem. Menos científica, é verdade. Mas dizem que alguns são acompanhados da paranormalidade e acabam por prever certos acontecimentos. Eu bem que ia gostar em descobrir que adivinhei esse momento. Mas, às vezes, quando essas possíveis adivinhações se tornam preguiçosas, a gente têm que dá um empurrãozinho.

#Ficaadica!


quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Planejamento-Plano-Meta [E Subjetividade]

Ela fica a maior parte do tempo em seu quarto de pensamentos. Talvez por, de certa forma, se sentir mais a vontade ali do que em qualquer outro cômodo do que não lhe pertence. Talvez, não. É.

E quando sai dali, se cansa. Cansa de estuprar seus tímpanos todos os dias com palavras desnecessárias, com neurices alheias de todos os dias. Com aquelas que saem grossas, secas e duras bem quando despejadas. E pelas pessoas erradas.

Um dia desses, em um momento até que tranqüilo. Nas companhias certas. No lugar certo, mas na hora errada, se perguntou: “Caralho, qual é meu papo?”. Talvez ainda sob efeito do psicotrópico usado no dia anterior. Os amigos riram. Na hora a pergunta saiu como uma piada [Aliás, nunca perde essa mania]. Também riu. E bastante.

Depois, já em seu quarto percebeu o quanto que aquela pergunta vai muito além. Não queria apenas saber qual era seu papo ali. Queria saber o que pensava a respeito de tudo. Do que andava lhe ocorrendo meses antes daquele momento e do que viria a lhe ocorrer depois. Queria saber do papo de todo o filme que passou em sua cabeça algumas horas antes, juntamente às explosões multicoloridas, típicas dessa época.

Um amigo lhe disse, há pouco tempo, que o que a garota precisa é de planejamento, de organização de metas. É, toda essa subjetividade insistente em seus pensamentos, talvez precisem ser transvestidas de objetividade. Mas como? Ela ainda se pergunta. Apesar de tentar. Acho que, além do que seu amigo disse, precisa também de iniciativa. Estranhamente, pois ausência de atitude não costumava ser o problema.